Surfe: Origem surpreendente fora do Havaí

Por mais de 3.500 anos, pescadores que habitam a costa do Peru têm desenvolvido suas habilidades na construção de barcos e na arte de surfar nas ondas oceânicas. Essa tradição milenar demonstra a profunda conexão que essas comunidades têm com o mar, utilizando seu conhecimento ancestral para navegar e se divertir nas águas costeiras. A prática do surf entre os pescadores peruanos não apenas representa uma forma de lazer, mas também um modo de vida enraizado na cultura e na história local.

Pescadores fabricam barcos de canas e surfam pelas ondas há pelo menos 3,5 mil anos no litoral do Peru Foto: Heather Jasper / BBC News Brasil Reprodução: https://www.terra.com.br/

Ondas de três metros de altura arrebentam na praia El Mogote, na aldeia litorânea de Huanchaco, no norte do Peru.

Observando a praia, podemos ver turistas locais e estrangeiros surfando no Oceano Pacífico. Mas, em uma curva da costa, ficam alinhadas as proas arqueadas dos caballitos de totora, com suas popas voltadas em direção ao mar. Os pescadores de Huanchaco usam essas embarcações artesanais para surfar há pelo menos 3,5 mil anos.

Conhecidas como tup em mochica – um dos idiomas nativos extintos do Peru – ou caballitos (cavalinhos), em espanhol, estas antigas embarcações são feitas com feixes de totora, uma espécie de cana que cresce em tanques de água doce perto do litoral. Sua proa característica, estreita e voltada para cima, corta as ondas e emerge sobre elas. O oceano, neste ponto, não é nada pacífico e, nos últimos anos, suas ondas épicas têm atraído surfistas modernos de todas as partes do mundo.

Para os povos que habitaram este litoral há milhares de anos, os caballitos eram a única forma de atravessar as ondas para chegar às áreas de pesca e surfar de volta para a praia. Os huanchaceños (moradores de Huanchaco) que utilizam os caballitos até hoje têm orgulho das suas embarcações. Alguns defendem que elas são as pranchas de surfe mais antigas do mundo. Mas, a cada ano que passa, menos pessoas aprendem a arte do cultivo da totora e da construção dos caballitos. E esta antiga tradição corre o risco de desaparecer nas próximas décadas.

A maioria das pessoas acredita que o surfe tenha sido inventado no Havaí. Existem no arquipélago gravuras rupestres que ilustram pessoas enfrentando as ondas, Elas foram datadas, pelo menos, do século 12 d.C. Mas o Museu do Sítio de Chan Chan, perto de Huanchaco, e o Museu Larco, na capital peruana, Lima, exibem cerâmicas muito mais antigas, que mostram pessoas e deuses usando caballitos para surfar, pescar e até transportar prisioneiros.

“Ninguém pesca aqui com barcos de madeira”, afirma Carlos Ucañan Arzola, um dos últimos fabricantes de caballitos de Huanchaco. “A totora é tradicional e ancestral. Ela vem dos mochicas (também conhecidos como a cultura moche, que data dos séculos 1 a 8 d.C.). Esta totora foi preservada em Chan Chan”, explica ele. Ucañan Arzola se refere à cidade Chimu, do século 7 d.C., cujo centro fica a apenas 5 km de Huanchaco. A renomada historiadora peruana María Rostworowski (1915-2016) acreditava que as cerâmicas podem datar de até pelo menos 1400 a.C.

Os caballitos medem cerca de 4 metros de comprimento e pouco menos de 1 metro de largura. Eles podem transportar até 100 kg de carga. Quando estão secos, os barcos pesam cerca de 40 kg. Mas, depois de uma manhã de pesca, eles podem pesar o dobro e precisam ser colocados na praia na vertical para secar, por um dia ou dois. Atualmente, todos os cerca de 40 pescadores remanescentes de Huanchaco ainda usam caballitos quando saem para lançar ou verificar suas redes.

Mas grandes barcos de pesca comerciais invadiram o litoral e o aumento da erosão e do lixo vem emaranhando e rasgando as redes. Com isso, os pescadores afirmam que a atividade é menos lucrativa a cada ano que passa. O resultado é que muitos huanchaceños passaram a trabalhar no setor de turismo ou simplesmente deixaram a cidade, em busca de oportunidades em outras regiões.

“Existem apenas três homens da minha geração que pescam em caballitos”, conta Edwin Blas Arroyo. Ele tem 30 anos de idade e começou a aprender a técnica com seu tio e seu avô, quando tinha apenas sete anos. Mas, mesmo com cada vez mais jovens abandonando a pesca em função do turismo e substituindo as antigas pranchas de surfe por modelos mais modernos, o caballito continua sendo o símbolo de Huanchaco. “Em Huanchaco, existe uma comunidade muito orgulhosa, consciente do seu passado, do patrimônio da sua cultura e do seu conhecimento, que data dos tempos dos mochicas e dos chimus, pessoas intimamente relacionadas com o mar”, escreveu a professora de biologia marinha Marina Quiñe, da Universidade Científica do Sul em Lima, no seu estudo El Caballito de Totora en Huanchaco.

“Desde suas origens, pescar com caballitos de totora é uma prática que não sofreu interrupções no litoral peruano”, ela conta. Segundo Enrique Amayo Zevallos, autor do livro Mar y Olas: Rito y Deporte – Del Tup o Caballito de Totora a la Moderna Tabla o Surf (“Mar e ondas: ritual e esporte do tup ou caballito de totora à prancha moderna ou surfe”, em tradução livre), era costume surfar por esporte, competição e em rituais em um equipamento chamado tupe, feito de uma combinação de canas de totora, bambu e pele de leão-marinho. Os rituais foram praticados até que os espanhóis os proibiram, por considerá-los pagãos.

“O propósito [do tupe] era se divertir atravessando as ondas do mar, ou surfando”, explica Amayo Zevallos. Atualmente, só o que sobrevive é o caballito, usado historicamente para surfar e pescar. O bioarqueólogo e antropólogo Jordi Rivera Prince é especialista nas comunidades pesqueiras antigas do litoral dos Andes. Ele destaca que “o projeto do caballito virtualmente não se alterou nos últimos 3,5 mil anos… Ele é história e cultura viva, ao mesmo tempo.”

As canas de totora são um produto delicado. Seu cultivo, colheita e transformação em embarcações marítimas é uma arte transmitida de geração em geração. Os pescadores unem as canas, de forma que suas hastes triangulares se encaixem perfeitamente e não haja bolsões de ar entre elas. Secar as canas verdes leva dias e preparar todos os quatro feixes necessários para construir uma nova embarcação é um trabalho de horas. Hoje em dia, a maioria dos pescadores amarra a totora com fios de nylon, mas, no passado, eles usavam cordas finas de pelo de lhama trançado. Com o desgaste causado pelas fortes ondas, pelo calor do sol equatorial e pelo atrito da areia e das pedras, os caballitos não duram mais do que dois meses, de forma que as cordas são guardadas para serem usadas em novas embarcações.

Ucañan Arzola explica que, embora os caballitos sejam principalmente usados para a pesca hoje em dia, ele não quer que seu propósito recreativo seja esquecido. “O caballito de totora também serve para esporte, para surfar nas ondas.” Ucañan Arzola aprendeu com seu pai a pescar e a surfar no caballito. Ele já viajou para a Austrália, representando Huanchaco em uma competição de surfe. Lá, ele usou a embarcação tradicional.

Observando os caballitos de pé na praia, eles parecem ser feitos totalmente de totora, como sempre. Mas, observando o pescador carregando sua embarcação para a água, é possível ver que o centro da maior parte dos feixes de totora dos caballitos inclui outros materiais. Alguns pescadores usam garrafas plásticas descartadas e outros empregam isopor, mas não porque eles flutuem melhor. Ocorre que, à medida que o litoral se desenvolve, os tanques de totora estão desaparecendo. A cada nova onda de hotéis, restaurantes e lojas de surfe, os pântanos são aterrados e vem a expansão desregulada.

A pouca distância ao norte de Huanchaco, o governo reservou um trecho de litoral para o cultivo de totora. Mas, segundo Ucañan Arzola, a área não é suficiente para atender à demanda, nem mesmo de poucas dezenas de pescadores. Cada tanque é de “propriedade” de uma família, que cultiva a totora e corta as canas quando amadurecem. Pode levar vários meses para que a totora cresça totalmente, de forma que as famílias praticam a colheita rotativa de diferentes tanques.

Quando os caballitos se desgastam, raramente existe totora em quantidade suficiente para construir embarcações novas. Por isso, desde meados dos anos 1990, os pescadores vêm usando algum tipo de enchimento para compensar a escassez das canas. Apesar das dificuldades, os poucos pescadores artesanais que ainda existem em Huanchaco estão determinados a manter viva a tradição do caballito. “O fato de ter resistido por milhares de anos é surpreendente”, destaca Rivera Prince. “Especialmente na cultura [econômica] de hoje, são muitas as razões para sair de casa, mas eles permanecem em Huanchaco. É um conhecimento profundamente especializado, tenho muito respeito por ele.”

Atualmente, muitos pescadores de caballitos estão na casa dos 40 e 50 anos de idade. Quando eles surfam de volta para a praia, sentados e guiando suas embarcações com sua vara de bambu, dois ou três jovens entram na água para pegar o barco e empurrá-lo pela areia. Depois que cada pescador retira seus peixes da parte oca atrás do caballito e os coloca na areia, um dos jovens irá erguer a embarcação sobre seus ombros e carregá-la até a praia, onde a deixará secando. Os pescadores sempre dividem sua pescaria com os ajudantes e com os idosos que não conseguem mais pescar, mas vêm até a praia pela manhã. Os peixes são distribuídos para a geração mais jovem em agradecimento e, entre os mais idosos, como sinal de respeito.

Felizmente, estes barcos de cana agora são preservados, enquanto Huanchaco se torna um destino de surfe moderno. Com a redução da pesca, alguns fabricantes de caballitos começaram a suplementar sua renda oferecendo passeios nos seus barcos para os turistas. Seus familiares e vizinhos também estão abrindo lojas de surfe e ensinando o esporte moderno para os visitantes. Durante os passeios, os turistas se sentam na parte oca atrás dos caballitos, que normalmente transporta as redes e os peixes. Olhando para trás, eles não conseguem ver as ondas chegando até ficarem encharcados.

Atualmente, os passageiros recebem coletes salva-vidas, mas os pescadores nunca usam o equipamento. Os passeios costumam durar cerca de meia hora e custam cerca de 50 sóis peruanos (cerca de US$ 13, ou R$ 73). Agora, como no passado, os pescadores de Huanchaco não usam remos modernos. Eles preferem a metade arredondada de um bambu de dois metros, como seus ancestrais faziam há milhares de anos. Honrar as tradições enquanto se dedicam ao turismo pode ser a melhor chance de sobrevivência do caballito. E, para Ucañan Arzola, a atividade também irá motivar a próxima geração. “Eles precisam acordar cedo para ir pescar”, destaca ele. “Eles precisam ser incentivados desde cedo. Eles precisam aprender muito sobre o cultivo da totora e como consertar redes de pesca.”

“Tudo isso leva tempo. Muitos começam a surfar em pranchas modernas, mas o caballito também está presente.” Conhecendo as origens do surfe com caballitos, a geração mais jovem pode fazer com que a tradição dos seus ancestrais sobreviva, mesmo com as dificuldades.

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